quarta-feira, 20 de abril de 2011

OS CAÇADORES DE CONCESSÕES, NO BRASIL, E O FANTASMA DE PERCIVAL FARQHUAR.

“E aquilo que o leitor julgar familiar, 
não estará enganado, 
o capitalismo não tem vergonha de se repetir.”
(Márcio Souza, in Mad Maria) 
O capitalismo liberal produz distorsões e efeitos perversos sobre a distribuição primária da renda nacional. Por exemplo: enquanto uma centena de milhões de trabalhadores brasileiros recebe rendimentos líquidos anuais que mal atingem R$ 600 bilhões, na esfera capitalista apenas algumas centenas de sociedades anônimas recebem lucros anômalos que superam os CR$ 100 bilhões. Lucros desse porte, concentrados em algumas pessoas jurídicas, sinalizam que vivemos um tempo de altíssima taxa de exploração do trabalho, com desdobramentos imprevisíveis sobre a organização social da produção e sobre o ambiente de confronto social. Dinheiro demais em mãos de poucas pessoas leva, quase sempre, ao desperdício e ao consumo supérfluo de bens úteis e inúteis, pacíficos e violentos, e à concentração do poder em oligarquias.

Para complicar ainda mais a nossa economia política, as S/A’s “altamente competentes” na extração do excedente econômico social são aquelas que se formam à sombra do poder de Estado, graças a privilégios distribuídos sob a forma de créditos e subsídios/incentivos tributários, e de concessões/permissões para exploração comercial de serviços públicos. Mais grave ainda, no caso brasileiro atual, é o fato de que as infra-estruturas para exploração desses serviços foram financiadas por impostos e constituem capital acumulado no passado, trabalho morto das gerações que nos antecederam. A transferência desse patrimônio coletivo ao capital privado, e estrangeiro, como vem ocorrendo, é o fermento principal das dificuldades atuais e do futuro sombrio que se desdobra perante a sociedade brasileira.

Este processo de acumulação primitiva e de apropriação privilegiada do excedente econômico social, conduzido por agentes econômicos externos associados às oligarquias domésticas, à sombra de um Estado complacente, não é um fato novo em nossa história. Pelo contrário, esta foi uma característica central do modelo econômico no período 1850-1930. Trata-se, portanto, de um fato recorrente de cuja análise histórica podemos retirar lições úteis embora dolorosas.
Este artigo procura, inicialmente, chamar a atenção para o novo polo de poder econômico, político e territorial que está sendo estruturado em torno da concessionária América Latina Logística (ALL), que acaba de constituir uma rede de 21 mil quilômetros de trilhos na América do Sul. O império da ALL despontou em 1996 quando um patrimônio coletivo - a Malha Sul da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) - foi privatizado/internacionalizado, como veremos no ítem 1 deste artigo.

Em seguida, o presente texto tece considerações em torno de um ‘equivalente histórico’ ao grupo ALL – o Sindicato de Percival Farqhuar, o ‘último titã do liberalismo clássico’ [1], concessionário de ferrovias, portos e minas, dono de seringais e de muitas terras no Brasil do Oiapoque ao Chuí. Na República Velha, o império de Percival Farqhuar foi construído em menos de três décadas, por meio de um habilidoso processo de captura de favores e privilégios estatais, tendo por marco inicial a concessão de construção e o arrendamento da “Ferrovia do Diabo”, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, ferrovia que sinaliza, mais do que qualquer outro empreendimento, a chegada dos norte-americanos à América do Sul e ao Brasil.
A Ferrovia do Diabo é o tema da última parte deste artigo, onde procuramos dar ênfase ao papel estratégico das ferrovias em geral, e à Madeira-Mamoré, em particular.

1-Privatização da Malha Sul/RFFSA e formação da ALL

Em 1996, o Órgão Gestor do Programa Nacional de Desestatização (PND), o BNDES, promoveu os estudos e o leilão de concessão da Malha Sul da RFFSA, nos quais foi assessorado por dois consultores: os consórcios Deloitte Touche Tohmatsu/Enefer e a Associação Nova Ferrovia liderada por Ernst & Young. Os consultores recomendaram e o Banco acatou um preço muito reduzido para a outorga da concessão: R$ 7.900.000,00, sete milhões e novecentos mil reais !

Com 6.586 km de trilhos, 15 linhas-tronco, 18 ramais, 2 linhas internacionais de curta extensão, e um imenso parque de oficinas formado por nove unidades industriais distribuídas do Paraná ao Rio Grande do Sul, o preço mínimo de concessão dessa ferrovia, estratégica para o Mercosul, ficou em torno de R$ 1.200,00/km ! O caráter irrisório desse valor ressalta quando o comparamos ao preço pago às firmas estrangeiras para o simples lastramento da EF Madeira-Mamoré em 1912 : 2.500 libras esterlinas / km!

Naquele ano de 1996, o leilão da Malha Sul da RFFSA foi vencido por um consórcio controlado por dois parceiros internacionais – Ralph Partners e Railtex – e por tres sócios nacionais – Interférrea, Varbra e Judori. O grupo GP/Garantia Parners, de Lehman, foi líder do consórcio vencedor e a ferrovia leiloada passou a se chamar Ferrovia Sul-Atlântico S/A. Este grupo que adquiriu o controle da da Malha Sul associou-se também, pouco depois, ao controle de outra ferrovia de grande extensão, a Centro-Atlântica.

Em 1998/1999, a Sul-Atlântico comprou outras ferrovias na Argentina e fundiu-se com a Delara, operadora rodoviária e de logística no Brasil. Dessa fusão nasceu a ALL Brasil, uma controlada da holding ALL América Latina Logística S/A que se tornava, assim, concessionária de mais de 16 mil km de trilhos nos dois principais membros do Mercosul, Brasil e Argentina.

Ao final de 2005, os fundos geridos pelo GP eram donos de 25% das ações do bloco controlador da ALL; dentre esses fundos merece destaque o Railtex International, constituído em 1977 nos EUA por técnicos oriundos das grandes ferrovias norte-americanas e que atua também na África do Sul [2] Naquela ocasião, o grupo GP dividia o controle da ALL com o o Global Environment Fund, gestor estrangeiro de fundos de private equity, como o Ralph Partners. Como titular de ações preferenciais da ALL aparecia o Capital Group, um dos maiores fundos de investimentos dos EUA, atuando em distintos países e em vários ramos de atividade (Editora Abril, Aracruz Celulose, Telemar, Usiminas, Marcopolo, no Brasil; Portugal Telecom, Vodafone, no exterior, por exemplo).

No mês corrente, maio de 2006, a ALL incorporou as ações de outras três concessionárias brasileiras – a Ferronorte, a Ferroban e a Novoeste. [3] A Novoeste, antiga Malha Oeste da RFFSA, é passível de exercer um papel de ferrovia de integração sul-americana, ligando-se em Corumbá a uma ferrovia boliviana que atinge o Pacífico e formando, assim, o único corredor ferroviário bi-oceânico da América do Sul.

Ao crescer a ALL extrapolou as funções de operadora ferroviária, tornou-se um dinâmico centro de negócios e diversificou suas atividades (portos, transporte rodoviário, terminais, armazéns, logística,etc), abriu o capital e passou a captar, via Bolsa, recursos de porte. Por ocasião da recente incorporação das ações da Ferronorte, Ferroban e Novoeste, foi noticiado que o valor acionário da ALL atingia R$ 6,8 bilhões, seis bilhões e oitocentos milhões de reais! Como a rede atual é de 21 mil km, no Brasil e na Argentina, pode-se dizer que o valor presente da ALL, de R$ 330 mil/km, já é equivalente a mais de 150 vezes o preço de compra das concessões leiloadas nos anos 1990!

No recente coroamento deste grande sucesso financeiro e operacional, a ALL teve o apoio das fundações estatais de previdência (integrantes do bloco controlador das ferrovias adquiridas em março último) e do BNDES. Assim, a operação recente de incorporação de ações está condicionada à conversão de debêntures do BNDES, no valor de R$ 321,6 milhões, em ações da Brasil Ferrovias! Esta operação “dará origem à maior empresa de logística independente da América Latina, com 960 locomotivas, 27 mil vagões.... (passando) a abranger uma área responsável por 63% do PIB do Brasil... e a atender 6 dos portos mais ativos do Brasil e da Argentina...Esses portos foram responsáveis por 80% da movimentação de grãos no Brasil,...,em 2005” (ALL,Fato relevante, jornal Valor, 10-05-2006).

A ALL tornou-se, efetivamente, um gigantesco polvo cujos tentáculos propiciam-lhe um market share invejável: uma participação média de 68% nos portos em que atua. Além disso é responsável pelo “gerenciamento de toda cadeia logística da Calpar, da Bunge Fertilizantes PR, da Camargo Correia em Apial e do Inbound da High Maltose para fábricas Ambev.” Ela mantém ainda contratos particulares e diferenciados com Unilever, Ford, Scania, White Martins, Sadia e Standard, entre outros (ALL, Mensagem aos Acionistas)e 22-02-2006).
A amplitude e a diversificação das operações da ALL, bem como a sofisticada rede financeira de participações acionárias em que se apóia, permitem levantar dúvidas quanto à natureza e aos objetivos de tal empreendimento. Trata-se de um simples conglomerado mundial ? ou estaremos assistindo ao ressurgimento de um poderoso truste, constituído nos moldes daqueles que dominaram as economias norte-americana, inglesa e alemã, e que se desdobravam nos países periféricos, nos séculos XIX e primeiras décadas do século XX ? Um exemplo da ação daqueles trustes no Brasil é encontrado na República Velha, na figura do norte-americano Percival Farqhuar, concessionário da EF Madeira-Mamoré, objeto do ítem a seguir.
2-Percival Farqhuar, um pirata da finança internacional

O norte-americano Percival Farqhuar chegou ao Brasil no início do século XX, após a primeira grande moratória da dívida externa de nosso país, renegociada com os Rothschild, e logo depois da assinatura do Tratado de Petrópolis, de anexação do Acre ao Brasil, que colocou duas condições principais ao Brasil: pagamento de uma indenização de dois milhões de libras à Bolívia e construção da EF Madeira-Mamoré, conhecida por Ferrovia do Diabo, cuja construção foi iniciada em efetivamente em 1907, ligando Santo Antonio do Rio Madeira a Guajará-Mirim, com extensão de 362 km Sua inauguração foi em 01 de agosto de 1912.

Convém relembrar que a indenização devida à Bolívia, segundo o Tratado, estava vinculada à construção de uma ferrovia naquele país, ampliando assim os bons negócios para financistas e industriais ingleses e norte-americanos, encarregados de fornecer créditos e equipamentos ferroviários aos dois países sul-americanos.

Mas o Tratado de Petrópolis não foi tão somente uma vitória da diplomacia brasileira. Este Tratado seguiu-se, na verdade, à vitória militar em uma guerra de guerrilha movida por brasileiros residentes no Acre, liderados por Plácido de Castro. Este caudilho, cujo nome já figura no Livro dos Heróis da Pátria, tinha plena consciência de que, no Acre, não lutava contra bolivianos, mas sim contra poderosos interesses estrangeiros, tendo em vista o arrendamento do Acre, firmado em 1901, ao Bolivian Syndicate - um truste sediado em Nova Iorque e em Londres, formado por empresas vinculadas ao negócio da borracha e à nascente indústria automotiva estadunidense. Alegando ruptura de contrato quando o Acre foi anexado ao Brasil, o Bolivian Syndicate julgou-se no direito de também ser indenizado, conseguindo obter cem mil libras do governo brasileiro, por ocasião do Tratado de Petrópolis !

Para a Bolívia, aqueles anos foram de dupla perda. Ao mesmo tempo em que cedia o Acre ao Brasil, ela entregou ao Chile sua faixa litorânea, perda da qual foi indenizada em dinheiro e com a ferrovia Arica-La Paz.

A chegada de Farqhuar ao Brasil, na gestão café-com-leite de Rodrigues Alves e Afonso Pena [4]pode não ter sido um mero acaso. É provável que sua chegada estivesse vinculada ao distrato com o Bolivian Syndicate e ao compromisso brasileiro de construção da Madeira-Mamoré. Homem habilidoso, Farqhuar rodeou-se de amigos importantes, como Alexandre Mackenzie e Ruy Barbosa, e serviu-se de um intermediário brasileiro para a compra da concessão de construção da Madeira-Mamoré – Joaquim Catrambi-, o qual, supõe-se, tenha operado como testa de ferro de Farqhuar. [5]

Se, para alguns, como o jornalista brasileiro Júlio Nogueira, Farqhuar foi “Um homem empreendedor,(...)cujo nome vale uma garantia pela maneira honesta e fiel com que se desempenha de seus compromissos...”, outros observadores viram ver nele o símbolo de uma época dominada por mercados e pela alta finança. Assim, o jornalista francês, H.A. Bromberger refere-se a Farqhuar como o resposável por:

-“esse empreendimento obscuro e assombroso, anárquico e absurdo, (que) possui o poder precioso, por si mesmo, de emitir em quantidade prodigiosa títulos sobre títulos, ações sobre ações, obrigações sobre obrigações. (...) a Brazil Railways aparece-nos como o empreendimento o mais temerário que tenha jamais saído dum cérebro yankee...”

Contraditoriamente à sua importância e ao título que lhe é atribuído nos EUA (o último titã!), Percival Farqhuar não é muito conhecido no Brasil. Mesmo em obras que se notabilizaram por constituir uma peça acusatória ao Estado patrimonialista, um bode espiatório de todas as mazelas que acometeram a sociedade brasileira, as referências ao ‘titã’, quando existem, são cuidadosas e diplomáticas. Assim, Raymundo Faoro refere-se a ele tão somente como “um hábil e ousado negociador de concessões” (pág. 722).

Mas os representantes do pensamento crítico descrevem Farqhuar como “um pirata da finança internacional, empregado ou diretor de empresas norte-americanas... caixeiro viajante da finança internacional... Sua tentacular Brazil Raiways Company controlava toda a rede ferroviária gaúcha, geria a Sorocabana, tinha interesses na Paulista, na Mogiana...obteve os direitos da Vitória Minas Gerais...passou a dirigir o Port of Para e a Companhia do Porto do Rio Grande do Sul...onde montou armazens frigoríficos, como no Rio de Janeiro. Afora isso, dispunha ainda de indústrias de papel, empresas pecuárias e de colonização, madeireiras, etc.” (Ivan Alves, págs.

Quando o Governo do Paraná reconheceu os ‘direitos de Farqhuar’ sobre terras ocupadas por posseiros brasileiros, à margem da EF São Paulo Rio Grande, conta-nos Ivan Alves que “o Vice-Presidente do Paraná, Afonso Camargo, era advogado da Brazil Raylways”, e informa ainda que, em fins de 1914, a “EF São Paulo- Rio Grande, integrante do Sindicato Farqhuar, tinha uns seis bilhões de metros quadrados de terras.” À margem dessa ferrovia, outra empresa do Sindicato, a Southern Lumber and Colonization Company, tornou-se a maior companhia madeireira da América do Sul. Esta empresa acabou por “liquidar os velhos madeireiros que só dispunham de rudimentares sistemas de transporte e não poderiam subsequentemente competir, em qualquer nível, com a subsidiária do grupo estrangeiro que acabou por absorver seus negócios a preços ínfimos.” (ibid)

O sucesso da Southern Lumber atraiu outras empresas estrangeiras- Piccoli, Hacker, Hansa, etc. “A corrupção campeava. Onde os capitais chegavam, terras lhes eram vendidas a preços vis, serrarias...” (ibid)

Na verdade, depois do Barão de Rothschil foi a vez de Percival Farqhuar ocupar o lugar de estrangeiro mais poderoso do Brasil, um homem capaz de montar um estado dentro do Estado brasileiro. No seu tempo “a corrupção era tolerada. De resto, isso ocorre quando os interesses são poderosos o bastante para manter-se no anonimato e, em consequência, na impunidade – não chegando portanto, como em diversas fases da história do país, a espicçar o moralismo da opinião pública urbana, que dela não tem o conhecimento pormenorizado.” (ibid)

3-A Ferrovia do Diabo

Os investimentos ferroviários dificilmente são rentáveis. Ferrovias bem administradas conseguem, no máximo, o equilíbrio operacional com suas receitas cobrindo as despesas de custeio. Por isto, ao longo do Império e da República Velha o Tesouro Nacional adotou, em primeiro lugar, a prática de garantir os juros dos capitais investidos em ferrovias e, em complementação, financiou com recursos públicos a construção das linhas tronco e/ou ramais dos caminhos de ferro. Assim ocorreu com a EF Madeira-Mamoré, na qual os custos de construção foram assumidos pelo Tesouro que, uma vez terminada a obra, arrendou a ferrovia ao Sindicato Farqhuar mediante uma remuneração módica, calculada como percentual da receita comercial.

A cobiça do capital privado pela posse e gestão de ferrovias, após a transferência ao governo dos ônus inerentes ao investimento, tem uma série de motivações extraordinárias. Em primeiro lugar, o controle de uma estrada de ferro é acompanhado pelo controle sobre as terras lindeiras e, frequentemente, sobre os recursos naturais que aí se encontram. Nesses casos, a gestão da ferrovia desdobra-se em gestão de território, permitindo acesso a madeiras, minerais e metais preciosos, água e petróleo, por exemplo.

Mas a ferrovia pode ainda permitir o acesso privilegiado a portos de exportação. O controle total do binômio ferrovia-porto é uma vantagem considerável na competição entre conglomerados transnacionais. Segundo o presidente da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína/ABIPECS, “a logística é decisiva para ganhar ou perder mercados. Um frete mais caro pode excluir um exportador de um mercado. O peso do transporte é de 10% no preço final.” Raciocínio análogo foi desenvolvido pela trading coreana Asila Ásia Marketing Center , líder de um consórcio de nove empresas candidatas à compra da Brasil Ferrovias e da Novoeste, “objetivando viabilizar com a Novoeste a interligação ferroviária entre os portos de Santos e de Arica ou Antofagasta...(o que permitiria reduzir custos no movimento de cargas do complexo soja e de minério na rota da Ásia.”

O grupo coreano a que nos referimos acima perdeu a competição pela Brasil Ferrovias e pela Novoeste que, por ocasião de sua venda, apresentavam uma dívida total de R$ 1,9 bilhão, superior ao valor de suas ações (R$ 1,1 bilhão). A intervenção do BNDES, transformando dívida em capital, debêntures em ações, foi fundamental para o reequilíbrio patrimonial da Brasil Ferrovias e Novoeste e viabilizou sua aquisição pela ALL. Mas o importante aqui é destacar a acirrada competição por duas estradas de ferro deficitárias e com excessivo nível de endividamento ! No caso do grupo coreano, esta compra poderia ser ainda uma excelente oportunidade para gerar demanda por equipamentos e material ferroviário, que poderiam ser produzidos por outras empresas integrantes do grupo, segundo informações publicadas na imprensa.
Porque constituem um ativo altamente estratégico, ações que incluem o controle da ferrovia propiciam oportunidades de obter ganhos especulativos no mercado de capitais. No caso da ALL, por exemplo, um desembolso inicial modesto de R$ 7.900.000,00, no Brasil, foi suficiente para iniciar a construção de uma das duas bases de sustentação de um conglomerado que pode valer, hoje, R$ 7 bilhões ! A compra recente da Brasil Ferrovias e da Novoeste, pela ALL, no valor de R$ 3 bilhões, não gerou saídas de caixa, houve apenas troca de ações e assunção de dívidas ! Mas isto não pôde ser feito sem a intervenção do BNDES, transformando debêntures em ações, a fim de equilibrar dívidas e valor acionário das duas ferrovias em disputa no processo conduzido pela Angra Partners. 
Os ganhos propiciados pela EF Madeira-Mamoré, a Ferrovia do Diabo, também foram imensos, apesar do déficit registrado na quase totalidade dos anos em que a ferrovia esteve em operação. Para Farqhuar ela constituiu o marco inicial de construção de um império particular – o Sindicato Farqhuar. Para os banqueiros e investidores ingleses e norte-americanos foi uma ocasião de auferir bons rendimentos. Para as indústrias dos países centrais ela gerou demanda por bens de capital.

Os trabalhadores envolvidos na construção da Ferrovia do Diabo foram os grandes perdedores cuja saga a história raramente registra. Salários miseráveis, regime de trabalho semi-escravo, doenças e mortes em grande escala, foram uma constante no cotidiano dos trabalhadores contratados para a construção da Madeira-Mamoré. Para os contribuintes brasileiros, que financiaram a construção por meio de impostos, nada restou, nem o caminho de ferro. Na década de 1930, os arrendatários da Madeira-Mamoré romperam o contrato e a devolveram ao Governo, na década de 1970 a ferrovia foi desativada e seus arquivos foram destruídos, comprovando-se a inviabilidade econômico-financeira do empreendimento inicial.

Antes de 1907, houve outras tentativas de iniciar a construção da Ferrovia do Diabo. Todas malograram frente às dificuldades do ambiente geográfico. A justificativa era a necessidade de contornar, por terra, os trechos não navegáveis do Rio Madeira, de forma a utilizar esta via fluvial para exportar mercadorias, principalmente bolivianas, pelos portos de Manaus e Belém. Por isto, a primeira tentativa foi feita por iniciativa do governo boliviano junto a investidores ingleses e norte-americanos, após a assinatura do Tratado de Ayacucho (1867) e de abertura dos rios da bacia amazônica à navegação internacional. A segunda tentativa foi fruto de um acordo firmado entre Brasil e Bolívia em 1882, pelo qual caberia ao Brasil fazer os estudos necessários e promover a construção do caminho de ferro.

Manoel Rodrigues Ferreira, autor da obra mais completa sobre a Madeira-Mamoré, esclarece que esta ferrovia abriu a porta de penetração no mercado internacional para os EUA. Segundo ele,

“em 1877, já fazia quase quarenta anos que a grande indústria pesada norte-americana vinha produzindo ininterruptamente e num crescendo sem cessar, aço barato e bom... Em 1877, aquela gigantesca estrutura de aço já estava apta para transpor as próprias fronteiras e aplicar os seus excedentes no estrangeiro. E a oportunidade surgiu com a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, nos confins da Amazônia, junto às cachoeiras dos rios Madeira e Mamoré. Esse pois o significado que tinha para o interesse nacional norte-americano a partida da empresa Collins [6]:

pela primeira vez na história norte-americana, uma firma norte-americana, utilizando material norte-americano, com capitais norte-americanos, técnicos e operários norte-americanos, iria construir uma estrada de ferro num país estrangeiro. Como no interior dos EUA, nas piores condições que se apresentaram, sempre houvera êxito em construções semelhantes, ninguém chegou, por isso, a vislumbrar qualquer possibilidade de fracasso neste empreendimento de P. & T. Collins.” (pág.112)
______
Há muitos paralelos que podem ser traçados entre a Ferrovia do Diabo e a ALL brasileira, entre Farqhuar J. Lehman, do Garantia Partners, entre a Brazil Railways Company e a América Latina Logística. Não cabe traçá-los no espaço deste artigo, nem eu teria competência para tanto em razão da dificuldade de acesso a documentos importantes do momento atual como, por exemplo, os acordos de acionistas passados entre os parceiros que controlam as ferrovias privatizadas. Também é difícil, no presente, identificar os grupos econômicos que realmente controlam um empreendimento, tendo em vista a prática de construção de pirâmides societárias. Falta-nos ainda a informação sobre a penetração desses grupos em outros países da nossa América do Sul. 
Podemos, simplesmente, levantar a hipótese de estar ocorrendo, entre nós, o desenvolvimento de uma estratégia que visa transferir para alguns grandes conglomerados e bancos estrangeiros o controle de nossas economias e a dominação de nosso território e de nossas riquezas naturais. Nessa estratégia as ferrovias, hoje como ontem, desempenham um papel ativo, e os piratas ou caixeiros-viajantes das finanças internacionais utilizam os mercados de capitais, ou apenas as bolsas de valores, para garantir o seu controle por agentes do poder imperial ! Acumulam-se as evidências de recolonização virtual da economia brasileira, a ponto de o próprio Ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, admitir que o Brasil poderá voltar ao período colonial e exportar apenas matérias primas ! [7]

Resta-me, enfim, agradecer a Manoel Rodrigues Ferreira o esforço heróico de pesquisa documental e a redação da obra “A Ferrovia do Diabo”, da qual retirei a quase totalidade de informações técnicas e sociais sobre este caminho de ferro. É a melhor obra já escrita sobre a construção de uma ferrovia no Brasil. Ele a dedicou

Á MEMÓRIA

De todos aqueles que, desde
o século passado, tombaram na
construção da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, desde
engenheiros a trabalhadores
braçais, brasileiros e de todas
as nacionalidades, todos
empenhados em vencer uma das
mais soberbas manifestações da
natureza na face da terra:

A AMAZÔNIA
(Manoel Rodrigues Ferreira, dedicatória em epígrafe)

Notas

[1]Charles A. Gauld- “The last titan – Percival Farqhuar”. Stanford University, USA, 1964.

[2]Um outro grupo sul-africano, o Naspers, passou a ter 30% do capital do Grupo Abril, em maio de 2006, ao comprar os 13,8% que pertenciam ao fundo de investimento da Capital International, holding financeira global que participa também do capital da ALL, por meio do Capital Group.

[3]Coincidentemente, em 1994, os estudos para privatização da Malha Oeste também ficaram a cargo dos consórcios Deloitte Touche Tohmatsu/Enerfer e Nova Ferrovia, após a licitação de praxe promovida pelo BNDES. O preço mínimo fixado para a concessão foi de R$ 2.550.000,00, dois milhões quinhentos e cinquenta mil reais, equivalente a R$ 1.500/km, tendo em vista tratar-se de 1.600 km

[4]Segundo Pedro Calmon, este governo (1903/1906) distinguiu-se, no plano internacional, por tres “sucessos brilhantes”, a saber: a)- o cardilanato obtido para o arcebispo do Rio de Janeiro (1905); b)a transformação da legação norte-americana em embaixada, em Washington, para a qual foi nomeado Joaquim Nabuco; c) a 3ª Conferência Panamericana que, em 1906, “se realizou com raro esplendor na capital saneada, limpa e refeita.” [1] Pedro Calmon, pág. 2099. Mas o esplendor e o brilho da política externa de Rodrigues Alves desdobraram-se, no plano interno, em conflitos sociais frequentes, bastando lembrar aqui: -o governo ditatorial exercido no Distrito Federal pelo Engenheiro Passos, nomeado com plenos poderes ao mesmo tempo em que as eleições eram adiadas, -a insurreição de novembro de 1904, contra a vacina mas também contra a expulsão das populações pobres que ocupavam cortiços no centro do Rio de Janeiro, -a utilização do regime de estado de sítio pelo governo federal, para conter os descontentamentos acumulados e as revoltas que se multiplicavam em vários pontos do território brasileiro.

[5] Catrambi recebeu a concessão de construção da ferrovia em 1906 e no ano seguinte repassou-a à empresa de Farqhuar, a Madeira-Mamoré Railway Company, fundada em Boston (EUA), em agosto de 1907. Em troca, Joaquim Catrambi recebeu US$ 750 mil dólares em ações, valor equivalente a 7% do capital da empresa organizada em Boston.

[6]A firma P.& T.Collins foi contratada pelo Cel. Church, em Filadélfia, para construir a Madeira-Mamoré, em 1877. Do porto de Filadélfia partiu o vapor Mercedita, em janeiro de 1878. fretado por Collins para levar a Santo Antonio os primeiros empregados e materiais necessários ao início das obras.

[7]Jornal Monitor Mercantil de 15 de maio de 2006.

Bibliografia

ALL, Mensagem aos acionistas, publicada em Valor, B14, de 22 de fevereiro de 2006.
----- Fato Relevante, publicado em Valor, A7, de 10 de maio de 2006

ALVES Ivan. O Contestado. Estados, posseiros, companhias – todos brigam pela terra. Coleção “Os grandes enigmas de nossa história”. Otto Pierre Editores, Rio de Janeiro/1982

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder, volume 2. Ed. Globo, São Paulo/1998 (13ª edição)

FERREIRA, Manoel Rodrigues. A Ferrovia do Diabo. Ed. Melhoramentos, São Paulo/1959 e 2005.

SOUZA Márcio. Mad Maria. Ed. Record, Rio de Janeiro/2002 (17ª edição)
Este artigo veio de ADUNIR - Associação de Docentes da Universidade Federal de Rondônia
http://www.adunir.org.br/xoops
Ceci Vieira Juruá 
(www.lpp-uerj.net/outrobrasil



Um comentário:

  1. O seu blog está lindo!
    Digno de um Dono do Senado Federal !
    http://adonadosenadofederal.blogspot.com

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