É o “maluco por trem”. É o cara que gosta de ver os trilhos, pregados a dormentes. É o sujeito que se sente atraído pela ferrovia; por seus barulhos e equipamentos. É o “ferroviarista”.
O termo “ferroviarista” não diz respeito a uma profissão. O ferroviarista ganha a vida em outras atividades, que nada tem a ver com estradas-de-ferro. Pode existir, no entanto, o ferroviarista que o destino lhe lançou à feliz condição de ser ferroviário por profissão.
A condição de ser ferroviarista, do mesmo modo que a condição de ser ferroviário, nada tem hereditário; Não obedece a nenhum tipo de “linhagem”.
O ferroviarista é vários. Há “N” maneiras de ser ferroviarista.
Há aqueles em que, em sua vida, se torna comum, fazer visitas – num “domingaço” – a algum pátio de manobras ou estação ferroviária próximos – às vezes nem tanto – de sua casa. Ele fica a observar atentamente as manobras, nem de muito perto nem de muito longe. Mantém no rosto um ar abobalhado, meio receoso que esteja incomodando e teme que a qualquer momento alguém vai vir e pedir que se retire. Sabe que às vezes é encarado como “meio doido”, mas não se importa. Sua câmara fotográfica dentro da mochila, aguarda um melhor momento para umas fotografias dos velhos e encardidos comboios e sabe ele que este momento pode não chegar desta vez, porque sabe que outrora, teria havido retenção de câmeras; de filmes. Por não saber se existe uma linha nítida separando passado e presente, não arrisca. Vai embora com o filme em branco, omitindo assim um valoroso “recado” à posteridade. Mas tudo vale, ele é persistente e voltará em intervalos regulares. Vai feliz ainda, pois leva na memória, o barulho “arrastado” das timonerias de freio dos vagões; do motor das locomotivas. Voltará, pois identificações amigáveis começaram a acontecer. Com o tempo fará amizade com alguns ferroviários e poderá tirar suas duvidas com relação àquela parte da ferrovia e de quebra conseguirá algumas boas fotos com a ajuda destes. Com um pouco de sorte encontrará um ferroviário ferroviarista, aí sim, se sentirá “em casa” mesmo.
Há ferroviaristas que querem saber coisas simples como o que transporta e para onde vai os vagões, ou como funciona a locomotiva. Consegue de ferroviários, alguma destas “informações”, ainda que a boca-pequena. Outros, ao contrário, são verdadeiros especialistas em detalhes diversos sobre locomotivas e vagões, a ponto de surpreender os próprios ferroviários. Há também os inventores de secretas “soluções” tecnológicas para a ferrovia, que em seu íntimo trocariam qualquer “patente” sua por uma vaga nos quadros da ferrovia.
O ferroviário por sua vez, conhece mais destes tipos. Está acostumado com aquele vizinho que embute perguntas sobre a ferrovia nas conversas corriqueiras. Já sabe até o momento em que o dono da venda vai lhe perguntar o “por que”, de estar passando pouco (ou muito) trem.
É fácil sempre de se reconhecer ferroviaristas; por seus hábitos. São aqueles motoristas que nas passagens de nível nunca se apressam em passar logo correndo a frente do trem, pelo contrário, encostam antes o carro, e nos braços elevam os pequenos (em alguns casos ferroviaristas mirins), garantindo-lhes também boa visão.
A alguns ferroviaristas, se torna comum “atrasar” sua viagem de passeio ao fazer uma parada no acostamento das auto-estradas para ver passar o comboio ferroviário. Se não puder saltar pra fora do carro, abaixa correndo o rádio para escutar o roncado do motor das locomotivas e aquele repetido “teleco-teco” das rodas dos vagões batendo nalguma junta dos trilhos. Não que lhe seja raro ver trens ou ao menos algum “caminho de trem”, ativo ou não. Afinal em nosso país, pontilhões, túneis, estações e todo o aparato duma ferrovia, desativada ou ativa sempre estão por toda parte. Porem muito do que empolga o ferroviarista, é o fator novidade. Ele procura as diferenças que há nos equipamentos ferroviários de uma ferrovia para outra. Diferença que no caso brasileiro é de extensa a lista. Ele quer ver, conhecer e guardar na memória esta pluralidade dos trens e contemplar a magia de todo caminho destinado a eles.
Há apegos individuais a este ou aquele “item” da ferrovia, o que ao final acaba por se formar grupos distintos. Por exemplo, é grande o número de ferro-modelistas e construtores de “maquetes”, o hobby que permite ao ferroviarista, criar sua própria “ferrovia”, com simulacro de linhas, trens e estações em miniaturas. Acrescentam ainda, tudo que seja adjacente à estrada de ferro. Estes estão sempre atentos a cada detalhe ínfimo na estrutura ou pintura desta ou daquela locomotiva ou vagão de verdade, o qual copiam nos pequenos modelos. Após tudo montado, fica formado um micro-ambiente ferroviário que com certeza, encanta até mesmo o mais despercebido e alheio das causas ferroviárias.
Há os que recorrem também a filmagens amadoras de trens e trens, às vezes deixando que passem pelas lentes, centenas de metros de um mesmo cargueiro em sua velocidade real. Fato que traz a muitos ferroviaristas de “freqüência” diferente, estes, convidados a ver o filme, uma carga de sono extra, que se descobre depois, tem mesmo a capacidade de corrigir insônia.
O valor e “encanto” de uma cidade para o ferroviarista é medido pela presença ou não de uma estrada-de-ferro. Em seu íntimo ele pensa em “defender a tese” de que desde outrora, nas cidades com a presença do trem, mesmo só os trens cargueiros, há em média mais cidadãos alegres e sorridentes em relação às cidades sem trem. Os cidadãos “com trem” seriam “motivados” não só pela simples visão das composições, mas também por na alta noite, hora de ir para a cama, escutar vindo lá da subida, ao longe, o ronco “sonolento” do trem.
Há aquele que, quando pela primeira vez numa cidade, o primeiro endereço que procura, é o da estação ferroviária... Veja bem! Mesmo que nela já não passe mais trem algum. Mesmo ainda, que já não tenha mais trilhos. Vai afoito pelo caminho, já procurando vestígios do antigo leito férreo; Vai como se tivesse nas mãos um mapa de tesouro. Quando enxerga o objeto de seu desejo, a estação, é mais ou menos como se enxergasse o esperado “X” desenhado numa pedra.
Se acaso de volta à cidade da infância, uma destas que já perderam o trem, vai, depois do almoço da tia, levando esposa e filhos, garantindo-lhes um programa diferente, andar pelo antigo leito da linha com seus pontilhões agora destinados a automóveis. Uma vez na plataforma da velha estação (ou das ruínas), olha na direção de onde antes surgia o trem que acabou talvez antes que ele próprio tivesse nascido, e da azas a imaginação. Os passos curtos, o silêncio absoluto que o acomete, a indiferença aos apelos de “ir embora”, a posterior não percepção de que ficara sozinho, significam que ele o está vendo resfolegante, a surgir por detrás do morro, como um dia foi.
Quando chega aos lugares que já perderam o trem, o ferroviarista quer dos moradores, informação. Quer ouvir as estórias, os “causos” de quando passavam os trens. Uma velha fotografia do ambiente ferroviário, retirada do fundo de malas esquecidas, o levará a certo estado de torpor e tentará levá-la consigo. Se acaso encontrar um ex-ferroviário ancião então, saí da frente; Este terá companhia em boa parte do dia.
Há os apaixonados por trem que não se expõem muito. Mas seus ouvidos estão sempre antenados para os lados da estrada-de-ferro; de noite e de dia.
Em geral o ferroviarista procura se informar melhor sobre ferrovias e logo se desfaz daquelas correlatas confusões e chavões tão comuns do universo ferroviário, como aquela que diz – ou dizia – que o “trem bala” japonês corre por sobre um só trilho. Assegura-se então de que este e também os trens europeus de alta velocidade “voam” mesmo, é sobre trilhos comuns.
O ferroviarista sabe da história do médico que escreveu um livro confessando seu sonho se tornar um maquinista de trem; se orgulha dela.
Há o ferroviarista saudosista. O que quer, por que quer, novamente viajar nos antigos trens passageiros de longa distância pelo interior do Brasil. E há o ferroviarista progressista que torce para que um dia se torne viável um trem de alta velocidade por aqui. Este entende que, o quê poderá possibilitá-lo foi a correta supressão daquele excesso de outros do passado. E há os que fazem um rolo danado e querem as duas coisas ao mesmo tempo.
O ferroviarista mais admirado, mais otimista, mais sonhador, “projeta” rota de linhas e sonha com a possibilidade de se construírem mais rotas e mais ramais ferroviários. Acompanha pela imprensa, a construção (quando os há), de cada quilometro de linha concluído, e sempre tem certeza de que é muito pouco. Porém, só acredita que surgiu uma nova ferrovia, depois que, no mínimo, vê pela TV os trens rodando (costuma ir ver de perto). Antes de ver não acredita. Tratores ligados perto de montes de terra não o iludem. Não se deixa enganar.
Não há como medir ou reduzir a um só termo o “ferroviarismo” do ferroviarista. Não existe uma escala. Pode-se apenas gostar de passar por perto de uma estação e ver o movimento ferroviário, ou então, se ver a pegar ônibus, carona, trem, avião, e sair em viagens demoradas, para ir a regiões remotas procurar locomotivas “perdidas” ou vestígios de trilhos a muito enterrados no chão.
Resumindo: o ferroviarista passa parte da vida a procurar de alguma forma, não se manter só ás margens da linha férrea. Ama o passado o presente e o futuro da ferrovia. Não só encara este gosto como distração, mas sabe da importância do transporte ferroviário. Por lerem nos jornais tudo sobre ferrovia, alguns leram um dia (se esquecendo de anotar o autor da frase e mesmo o colunista que a citou), alguma coisa assim: “O transporte ferroviário é a coluna de toda nação organizada”. O ferroviarista fica então otimista, pois sabe que a tendência (contra qualquer outra tendência) é o progresso. Sendo assim, sabe que há sempre de se aumentar uma das visões que mais lhes alegra a alma (de ferroviário): A de vias férreas e comboios ferroviários.
Carlos Antonio Pinto
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