sábado, 23 de julho de 2011

Uma antiga marca de soro!

Corre o ano de 2020. Em Presidente Venceslau, hoje uma decadente cidade próxima ao rio Paraná, o menino de 10 anos e seu avô conversam em frente a um prédio em ruínas.


- Vovô, por que as pessoas daqui dizem que nós ficamos na Alta Sorocabana?
- Porque, meu netinho, antigamente passavam por aqui os trilhos de uma estrada de ferro chamada Sorocabana, e como estávamos na parte mais longínqua dela, chamavam de “Alta”...


- Vovô, o que é estrada de ferro?
- Ah, netinho, você era muito novinho quando ela desapareceu. Vieram uns homens aqui e tiraram os trilhos, porque a empresa que deveria usá-las dizia que não precisava mais deles. Sobre esses trilhos andavam trens, enormes locomotivas puxando carros que transportavam gente e mercadorias. Se você quiser ver como eram essas locomotivas, eu devo ter umas fotografias velhas lá em casa. Acho que até tenho umas revistas que mostram algumas que ainda andam hoje na Europa...



- Mas, vovô, por que a empresa não os quis mais?
- Porque... bem, é uma história comprida. Há muito tempo, ainda no século XIX, várias dessas estradas de ferro foram construídas no Brasil inteiro para transportar o que fosse necessário. Os automóveis ainda não existiam e as estradas eram muito, muito ruins. A que chegava aqui era a Sorocabana.
- Por que Sorocabana? Sorocaba não é uma cidade muito longe daqui?
- Sim, mas quando ela começou, ligava São Paulo a Sorocaba, e daí o nome. Depois, eles esticaram os trilhos até aqui. Mas a verdade é que, em 1920, os donos da estrada estavam quebrados e o Governo de São Paulo ficou com a ferrovia. Eles sabiam que era fundamental manter o transporte bom para o desenvolvimento de São Paulo. Eles recuperaram tudo e a Sorocabana passou a ser uma grande ferrovia.
- E depois, vovô?
- Depois, filho, começaram a chegar os automóveis, os ônibus e os caminhões e o Governo achou que deveria melhorar as estradas, e deixou de conservar as ferrovias. Um grande erro.
- Por que? Os automóveis não são bons e melhores do que os trens?
- Sim, é verdade até um certo ponto. Os trens ainda são uma forma boa e barata de carregar gente e mercadorias em trechos muito grandes. E como o Governo só olhava para as rodovias, hoje temos uma poluição e tráfego carregadíssimos nas estradas e nas cidades, e preços muito altos de transportes.
- Então desde que chegou o automóvel não tem mais trens?
- Não. A partir de 1950, as ferrovias passaram quase todas para os Governos, mas estes não as administravam mais como antes. Elas passaram a dar prejuízos cada vez maiores, mas, como ainda tinham serventia, foram ficando. Pra tentar melhorar um pouco, em 1971 o governador juntou todas as de São Paulo numa só, a Fepasa, e a Sorocabana desapareceu.
- Mas, vovô, mesmo assim, a gente ainda conhece o nome!
- Sim, filho, mas ele está desaparecendo da cabeça das pessoas. Aqui na cidade, pouca gente se lembra do nome, e mesmo assim, quando falam das ruínas aí da frente.
- O que era esse prédio, vovô?
- Era a estação. Aí os trens paravam e recolhiam e desembarcavam passageiros e mercadorias. Era um lugar muito bonito e com muito movimento. Era a Sorocabana aqui na cidade.
- Mas por que não cuidaram dela?
- Bem, netinho, a Fepasa foi indo, bem ou mal, até uns trinta anos atrás. Aí chegou um governador que decidiu que isso não servia mais para nada e a abandonou. Depois de quatro anos de abandono, vendeu-a para uma empresa que achou que os trilhos aqui nem para ela serviam e pressionou o Governo para que ele concordasse com ela. E aí, no dia em que o governador disse que ela tinha razão... tudo se foi.
- E ela tinha, vovô?
- Não, não tinha. A nossa cidade e muitas outras cresceram com a ferrovia. Agora correm o risco de desaparecer sem ela.
Quarenta anos se passaram. No matagal onde ficavam as ruínas da estação de Presidente Venceslau, em 2050, um dos poucos moradores da cidade passa por ali, critica a sujeira e conversa com o filho.
- Papai, ouvi hoje um velhinho dizer que isto aqui era bom nos tempos da Sorocabana. O que é Sorocabana?
- Não sei bem, filhote. Acho que era um remédio antigo, um soro para doentes... o soro Cabana...

POR RALPH MENNUCCI GIESBRECHT









5 comentários:

  1. Excelente texto. A partir de um diálogo de duas gerações dstintas, a reconstrução de uma história real. O tempo da narrativa vai ao futuro para chegar ao presente...

    Parabéns! Fabiana Ratis

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  2. Boa Noite! Poxa vida! Emocionante, triste e real!
    Muito bom artigo!

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  3. Me lembrou o o filme Cinema Paradiso.A memória deveria servir como guia para os governantes...infelizmente não é assim.Glaucio Elias

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  4. Está na hora de passar informação verdadeira p/ nossa população, que é muito diferente do País Maravilha da propaganda.
    Transformaram nosso povo em gente com coração de pedra, será que nada mais sensibiliza?

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  5. Realmente, foi um grande erro abandonar as ferrovias . O país precisa de uma grande malha ferroviária.

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