terça-feira, 17 de maio de 2011

História perdida nos trilhos.

História perdida nos trilhos

As ferrovias, que já foram sinônimo de desenvolvimento no Brasil, perderam espaço para o transporte rodoviário e hoje sobrevivem na memória de cidades que têm os trilhos como parte de sua paisagem


História perdida nos trilhos

Araraquara, município com cerca de 200 mil habitantes, situado no centro do Estado de São Paulo, é cortada por uma estrada de ferro fundada em 1895. A ferrovia é marca de seu desenvolvimento econômico e foi importante para o transporte de passageiros, mas hoje serve apenas para o transporte de cargas, realizado por uma empresa particular. Essa situação não é diferente em cidades do mesmo porte no interior do Estado, que viveram a época áurea dos trens. “A ferrovia era vista no final do século XIX e no início do XX como símbolo da modernidade”, conta o historiador Célio José Losnak, docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Atualmente, no entanto, apenas cerca de 20% da matriz de transporte brasileiro é apoiada na rede ferroviária.
Segundo Dilma Andrade de Paula, historiadora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), as ferrovias representaram uma grande revolução no sistema de transportes mundial. “Até sua criação, nunca se havia transportado tanto e a tão longas distâncias terrestres”, argumenta.  “Muita coisa circulava pelos trens: mercadorias, pessoas, trabalhadores, notícias, informações e relações sociais. A vida de uma cidade mudava para melhor quando ela estava à beira da ferrovia”, pontua Losnak.

Café

As ferrovias do Estado de São Paulo foram construídas para apoiar e viabilizar a principal atividade econômica do País no século XIX – o café. “A malha ferroviária foi instalada para que o produto pudesse ser escoado até o Porto de Santos de maneira rápida, segura, eficiente e mais barata. Também possibilitou a expansão das áreas produtoras para o oeste de São Paulo, cada vez mais longe do litoral”, diz o pesquisador. 
Os investimentos que aconteceram por conta da exportação cafeeira, contudo, resultaram em uma dinâmica socioeconômica que ultrapassou esse sentido inicial. “Muitas cidades surgiram em torno das estações e trilhos. Os trens transportavam mercadorias para além do café e se consagraram como grande meio de transporte”, destaca Dilma.
Quando as ferrovias foram instaladas em São Paulo, explica Losnak, elas eram a principal via de comunicação e transporte com a capital e o litoral, percorrendo longas distâncias. “As cidades que eram cortadas pelas ferrovias se integravam em uma rede econômica, social e de comunicação. Até o sistema de Correios era realizado pelas companhias ferroviárias”, enfatiza. No Estado, as ferrovias mais importantes na época foram a Santos-Jundiaí (1867), a Companhia Paulista de Estradas de Ferro (1872), a Sorocabana (1875) e a Companhia Mogiana (1875).

História

Em 1854, nasceu a primeira ferrovia no Brasil, por iniciativa de Barão de Mauá, que fazia ligação da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, com Petrópolis (RJ). Outras ferrovias históricas são a D. Pedro II (RJ) e a Recife-São Francisco (BA), ambas inauguradas em 1858; além da Bahia-São Francisco, em 1860.
Outras ferrovias ainda merecem destaque, como a Paranaguá-Curitiba (1883) e a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1905): partindo de Bauru (SP), esta ferrovia atravessava São Paulo e o atual Estado de Mato Grosso do Sul, chegando até Corumbá, na fronteira do Brasil com a Bolívia, com a construção da ponte ferroviária sobre o Rio Paraguai, em 1947. 
“Em termos gerais, o período de maior expansão ferroviária ocorreu entre 1908 e 1914. Somente em 1910, foram construídos 2.225 quilômetros de ferrovias, marca nunca mais atingida”, aponta a historiadora.
De acordo com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), em 1884 o Brasil possuía 6.116 km de ferrovias, além de 1.650 km em construção. Já em dezembro de 1888 existiam 9.200 km em exploração e 9.000 km em construção ou em estudo. Atualmente, a malha ferroviária brasileira tem cerca de 29 mil quilômetros de extensão (veja infográfico).

Declínio

Na década de 1930, as ferrovias começaram a entrar em declínio. “Nessa década, o Governo Federal passou a investir menos, a malha ferroviária deixou de crescer e a manutenção da estrutura existente diminuiu”, detalha o historiador da Unesp. Outro fator que contribuiu para a decadência desse transporte foi a grande variedade de bitolas (distância de separação dos trilhos), dificultando a integração entre as ferrovias.
Após 1945, houve a transição de uma economia voltada para a produção e exportação de produtos primários para outra mais voltada ao mercado interno, principalmente para a indústria. “A mudança de eixo econômico arrastou consigo as ferrovias que, construídas em função do modelo agroexportador, começaram a sofrer um processo maior de desgaste”, contextualiza Dilma.
A prioridade para o transporte rodoviário tornou-se evidente na década de 1950. “Era corrente o comentário de que o presidente Juscelino Kubitschek seria o responsável pelo apoio à indústria automobilística e ao mesmo tempo teria sucateado a ferrovia. Nesse momento, as companhias ferroviárias já enfrentavam problemas de vários tipos, e essa tendência continuou até os anos de 1990, quando elas foram transferidas para a iniciativa privada”, comenta Losnak.
A docente da UFU aponta que, com o sucateamento crescente, os trens se atrasavam com frequência e os acidentes tornavam-se rotina. “Com o material rodante obsoleto, os trens perdiam velocidade, tornando o transporte de bens perecíveis muito mais arriscado do que pelas rodovias, e também levando à fuga de passageiros, geralmente para os ônibus ou carros particulares. Foram arrancados mais de dez mil quilômetros de trilhos”, realça ela.

Passageiros

As ferrovias, importantes até então para o transporte de passageiros, perderam essa função. “Os trens dos subúrbios permaneceram, embora sucateados, mas muitos trens de passageiros foram extintos na década de 1980; e os demais foram desativados após a divisão da malha ferroviária e concessão para a iniciativa privada, na década de 1990. A ferrovia brasileira tornaria-se, de fato, voltada sobretudo ao transporte de cargas (minérios e produtos agrícolas de exportação), divorciando-se do transporte de passageiros”, salienta Dilma.
Losnak julga difícil mudar o atual quadro de abandono da ferrovia no Brasil. “Ela funciona para o transporte de algumas cargas de longa distância e em algumas linhas tidas mais rendosas, mas ainda com precariedade porque as empresas arrendatárias investem pouco e o Governo Federal não fiscaliza adequadamente”, lamenta. “Para mudar essa situação, teriam que ocorrer vultosos investimentos para recuperar o que já se perdeu e coragem política para contrariar o senso comum e as forças econômicas que priorizam o transporte rodoviário”. Para o historiador, a reutilização de trem para o transporte de passageiro, então, é uma realidade ainda mais distante. 

Por Patricia Piacentini
http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/

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